O crime, o criminoso e a pena

O debate de idéias é essencial para qualquer perspectiva de mudança. A proposta deste blog é publicizar algumas reflexões e alguns pensamentos sobre temas que envolvem o direito penal, a criminologia, os direitos
humanos e a segurança pública.
Muito porque estes temas tomaram o debate público colocando o "crime" e o "criminoso" como o fato e o personagem centrais de nossas vidas, e a "pena"como a única oferta possívelpara eles. O crime nos é apresentado como fato universal, a pena como a solução
universal, mas a escolha do que fato-crime que receberá a pena, baseia-se no indivíduo. A premissa acaba, ela mesma, por não se satisfazer.
Seria, então, possível buscar soluções construídas,
inclusive, fora do sistema penal? Também porque parece ser
necessário mediar o desejo de segurança com o de liberdade.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A VIDA E A MORTE: QUEM SEGURA OU PUXA O GATILHO?

(Publicado originalmente na Gazeta do Povo em 07/06/2011) 

Não parece ser novidade que episódios dramáticos como o do Realengo suscitem, dentre tudo, discussões em torno de “crimes” e de “penas”; normalmente “mais crimes e penas mais altas” ou até mesmo um plebiscito.

O Congresso, que tem legislado vorazmente em matéria criminal, em particular, nos últimos vinte anos, alinha-se com as chamadas políticas de “tolerância zero” e de “lei e ordem” e liga-se a episódios comunicados fantasticamente. Digo nas duas últimas décadas, porque se pode falar de fatos ocorridos, na vida nacional direta ou indiretamente, que estariam vinculados leis em matéria penal: seqüestros de empresários no Rio e em São Paulo com a Lei de Crimes Hediondos (1990), e suas alterações em face da morte da atriz Daniela Perez (1994) e da CPI dos medicamentos falsificados (1998); o episódio na Favela Naval de Diadema e a Lei de Tortura (1997); o chamado “Salve Geral”, ocorrido em 2006, cuja autoria se atribuiu ao PCC e a nova Lei de Drogas, apenas para referir alguns. Outros tantos ensejam projetos de lei ou de emendas constitucionais: o caso do menino João Hélio engrossou a lista de projetos para a redução da idade para imputação penal; o caso de Suzane Hichtoffen retomou a discussão sobre o exame criminológico (feito para obter um regime mais brando que, desde 2003, deixou de ser obrigatório, também porque sua duração, em alguns lugares, era de olímpicos 8 minutos!); o caso de Luisiânia ensejou a tramitação do projeto sobre castração química, e assim em diante.

No âmbito do processo penal, as coisas parecem seguir pelo mesmo caminho: o caso Nardoni teria ensejado a diminuição do número mínimo de peritos (agora somente 1) para realizar os exames periciais; o caso Doroty Stange teria colaborado com a supressão do protesto por novo júri; o caso Eldorado de Carajás alteração a competência para julgar policiais militares.

A mensagem oficial que acompanha estas leis que prevêem “mais crimes, penas mais altas, e menos benefícios” ou mesmo o “endurecimento” na execução penal é combater a criminalidade e evitar a impunidade. Um dado me faz pensar acerca de uma pretensa “eficiência” da idéia: a população carcerária aumentou – nestes 20 anos – mais de 300% (olhando os dados oficiais do próprio sistema penitenciário), assim temos quase 500.000 presos e mais 500.000 prisões a serem cumpridas. Isso significa 1.000.000 de pessoas às barras do sistema de justiça criminal.

A violência, segundo frase que gravita no senso comum, continua aumentando.

Cabe-me considerar que o crime, como já disseram muitos há séculos, passa a ser um importante produto, não só econômico como também e especialmente político: se olharmos as “plataformas” das últimas campanhas eleitorais e as “ações de governo” nos âmbitos municipal, estadual e federal, iremos nos deparar com a “oferta”  de segurança pública e de tudo que com ela se relacione.

Entretanto, não refiro aqui a questão cruel e caótica do sistema penitenciário do país, nem a precariedade do sistema de justiça criminal (para nós do PR, agravada pela falta de Defensoria Pública), tampouco as idéias de pena como castigo ou como ressocialização. A reflexão é sobre as relações humanas, algo bem mais complexo e como as interações sociais contribuem ou não no processo de cometimento de crimes. Portanto, não me aventuro a propor uma “solução para a criminalidade”, mesmo porque (se ela existir) precisará de todos nós, parece-me.

Quero apenas refletir sobre a capacidade que disposições de natureza penal tem sobre a não realização de crimes. Quem deixa de cometer crimes por medo das penas a
eles previstas? Quem os comete porque a pena é branda demais?
Já foram muitos os estudos que desqualificaram, com razão – acredito – estes efeitos intimidadores. Há muitos outros fatores que determinam a não realização de delitos: mais potentes, muito mais duradouros e bem mais complexos do que a existência de leis.

Arrisco dizer que o que nos leva a realizar um homicídio ou a deixar de fazê-lo provém de uma multiplicidade de fatores, bem mais nodosa e bem mais profunda do que a mera existência
de lei. Digo isso até para que pensemos que é provável que não se mataria mais se as penas fossem reduzidas pela metade, ou substituídas por restrições de direitos.

A dificuldade ou o desinteresse da compreensão de tais fatores, que passam por determinações vindas de tantos tempos e de tantos campos do conhecimento humano e que
influenciam nas condutas individuais e sociais, parece ser o que faz com que reduzamos tudo ao texto da lei. Um modo fácil de nos livrarmos destes compromissos e do que eles significam é depositar na lei a salvação de todos.

 A história do indivíduo e da sua comunidade, as questões culturais e religiosas, os fatores econômicos e políticos, o modelo social e estruturante da vida que se leva influenciam nas
condutas que se tem, inclusive, frente aos outros e ao próprio “crime”. Isso acaba sendo reduzido e banalizado.

A banalização da vida e da morte não pode ser pensada unicamente sob o prisma do crime e da pena. Se assim fosse porque a enxurrada de leis penais (nestes 20 anos) não diminui o crime, porque as penas não intimidam, porque as carceragens fétidas e desumanas não assustam? Quais os fatores que seguram ou puxam muitos gatilhos todos os dias?

Precisamos nos olhar e nos reconhecer nos outros. O plebiscito não é nossa salvação.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Silêncio das Marias


(Publicado na Gazeta do Povo  em 15/02/2012)
As mulheres tidas como feiticeiras e bruxas recebiam sanções cruéis e degradantes sobre seus corpos. A fogueira, a roda e a guilhotina ceifaram com muita dor suas vidas. A Inquisição e sua ideologia são exemplo desse extermínio. O Martelo das Feiticeiras continha as instruções a serem seguidas pelos inquisidores nos processos criminais que as penalizavam.
Esse modelo penal que as matou queria a proteção do Estado e quem o ameaçasse era punido com a pena capital; com dor e publicamente para que o temor inibisse outras mulheres. A simbiose entre Estado e religião sustentava que os crimes por elas articulados e conspirados em segredo tinham por objetivo desestabilizar o Estado.
Num outro recorte, mais à frente, as mulheres atuam fortemente na política revolucionária francesa, mas ao se instalar o processo de participação e representação políticas foram convidadas a voltar ao âmbito privado, de onde só saíram para ajudar seus maridos e filhos revolucionários.
A Inquisição e as Revoluções, em certa medida, impuseram ou reservaram às mulheres um papel no âmbito privado, no circuito das relações domésticas, no silêncio dos lares ou quiçá das florestas. Mas não um espaço público. E isso se reproduziu.
A participação e as composições no âmbito público e nas organizações privadas parecem não se ter modificado, efetivamente. Há ensaios, mas a cultura reinante em nosso modelo latino-americano privilegia, mais ainda na seara penal, um direito doméstico, que dificulta sensivelmente tal emancipação.
A Lei 11.340/2006 ao se denominar como a que coíbe a violência doméstica e familiar dá bem conta de que a violência contra mulher, segundo a lei, a ele se restringe. As violências sofridas no espaço público, nas relações laborais, por exemplo, quanto aos postos de comando e ganhos salariais não são objeto de sua consideração. Vê-se aí uma complexidade que não se quer admitir.
A lei de 2006 pretendeu acabar com a violência doméstica e familiar e estabeleceu medidas penais e de processo penal que permitem um tratamento mais severo ao acusado de agressão contra a mulher. Como seria possível que uma lei pudesse coibir algo que, ao que se alardeia pelo próprio movimento de mulheres, encontra-se culturalmente arraigado em nossa estrutura social? A lei não tem esta capacidade: não coíbe e não reprime nem esta nem qualquer outra violência.
Assim é necessário declarar que o quer a lei é punir e castigar o agressor. O problema é que esse discurso (que não está claro) destoa de um Estado que se diz democrático, porque a vingança é (e deve ser) eticamente inaceitável. Aí residiria uma das maiores incongruências do movimento de mulheres: usar a violência estatal (que é a pena) para lidar com a violência contra elas.
No âmbito do processo criminal, que há muito “confiscou” a palavra da vítima e “sequestrou” sua participação efetiva na Justiça criminal, especialmente, sob o mito da imparcialidade dos julgamentos, ficou latente um desejo de vingança; que não só foi tomado pelo Estado (ele é o vingador), como facilitou o surgimento de uma demanda coletiva por repressão.
A tentativa de efetivar um modelo restaurativo e que permitisse a reflexão de agressor e vítima (mesmo timidamente, pois limitada pelas penas dos crimes) sobre o conflito existente veio com os Juizados Especiais Criminais. A experiência do modelo personalizado e multidisciplinar da cidade de Curitiba ia nesse rumo. Os atores desse processo eram partes que expunham – mediadas pela Justiça criminal de nova matriz – suas agruras e seus anseios, sua história particular que culminou naquela violência. Buscava-se uma solução social para resolver o conflito que também é social. Denúncias e sentenças cediam lugar a experiências sociais e soluções particulares. Sem modelos, sem estatísticas. Havia um lugar para escutar essa mulher vitimada e vitimizada, talvez nunca antes ouvida. O homem também falava e era ouvido.
A decisão judicial, ora festejada, parece impor o silêncio às Marias, como se a “solução” para a violência que as aflige e que as macula pudesse ser agora resolvida por um processo criminal que começa sem sua fala, sem sua escuta, e que segue incontinente o rumo de tantos outros, culminando numa pena, e enchendo nossas cadeias já tão lotadas. Ela precisa se perceber como a sofrer uma violência. O autor da violência que a inflige. O Estado deve contribuir para sua pacificação e não para sua penalização. Para que ambos não mais aceitem ser violados nem violadores.
A violência do sistema propiciará apenas, a história tem mostrado, a perpetuação do seu modelo que é autoritário e repressor; não apaziguando senão potencializando conflitos.

Priscilla Placha Sá, advogada criminal em Curitiba, é professora de Direito Penal da UFPR e da PUCPR. Membro do Núcleo de Estudos de Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR.